1,
2, 3, 4 vagões lotados. Dou um passo pra trás, seguindo o ditado, pensando que
conseguiria dar outros adiante com maior facilidade. Ledo engano. Saio da
estação de metrô República e vou pra Santa Cecília. 1, 2, 3, 4, 5, 6 ... Depois
de quase 45 minutos entre a estação Brigadeiro e Santa Cecília, desisti de contar
vagões lotados, desisti de controlar o desespero de chegar atrasada, desisti de
olhar com revolta para os trens vazios que intercalavam as latas de sardinha. Tirei
os fones de ouvido e parei de ouvir mantras.
O
povo é pacífico, acostumado a não reclamar porque, segundo as opiniões comuns,
não adianta. Mentira: adianta sim. Fui conversar com a responsável da cabine de
controle, saber o que estava acontecendo. Ela me explicou, meio sem graça,
sabendo que não tinha muito a explicar, sugeriu novas rotas – que não deram
certo – e contou sua história, o percurso insano que faz pra chegar ao
trabalho, usando trem e metrô, porque se viesse de ônibus gastaria o dobro do
tempo. Tentei pegar um ônibus, mas teria que pegar dois pra chegar ao meu
destino. Ganhei um bilhete de metrô pra compensar minha perda de tempo.
Senti-me desconfortável, no primeiro momento, por ganhar uma passagem gratuita,
mas em seguida recordei que fui reclamar, tomei a atitude de revindicar um
direito de todos, porque fui educada assim. Voltei ao metrô e a moça da cabine
disse que havia pedido um trem vazio, que já estava chegando, para partir da
estação. Adianta sim reclamar.
Desci
à plataforma, chegou o trem o vazio, e pude até me sentar ao lado de duas
moças. Comecei a falar alto que todo político, antes de exercer seus cargos,
deveriam ser obrigados a usar por um ano os meios de transportes públicos em
horários de picos, sozinhos, sem guarda-costas, acotovelando-se e se
controlando pra serem educados, pedirem licença, obrigado etc. Queria ver essa moçada falando que o povo é mal
educado... Algumas pessoas deram risada, outros ficaram bem sérios e evitaram
olhar pra mim, e as duas moças ao lado engrenaram um papo. Rolou a conversa de
sempre, sobre o sistema precário de saúde, educação e transportes públicos,
aquilo que deveria ser a obrigação do Estado dar aos trabalhadores, aos
contribuintes, aos cidadãos; aquelas boas condições que os políticos se
comprometem em dar à população para serem elegidos.
Percebi
a inteligência sofrida nos olhos brilhantes e exaustos das moças, e logo elas
perceberam que aquela não era minha realidade e me contaram suas vidas. Vida de
gente batalhadora, honesta, pobre, com garra pra modificar a situação, com uma
paciência infinitamente maior que a minha para suportar os revezes. Fiquei
envergonhada pela minha revolta de um dia. Uma era enfermeira, tentando
frequentar faculdade de medicina, mas veio do ensino público, não tem dinheiro
pra pagar uma faculdade particular e não tem base pra entrar em faculdade gratuita.
Pega, todos os dias, no horário de pico, aquele mesmo trem em que nos
encontramos. A outra estava com um livro aberto na mão. Tá bom, nem vou falar
qual era o autor, mas estava lendo um livro e se tivesse tido outras oportunidades
estaria lendo outros livros. Notei que usava como marcador a carteirinha de seu
plano de saúde.
Lá
pelas tantas, a moça do livro contou que há um mês atrás havia perdido seu
filhinho. Quando ele nasceu, começou a pagar um convênio médico particular.
Tentou colocá-lo como seu dependente, mas o período de carência não permitiu. O
menino com dois meses ficou doente, foi a um hospital público, e disseram que
não tinha nada. Da última vez que o menino foi ao hospital, não voltou mais.
Teve uma parada cardíaca e foi embora dessa terra com apenas três meses. Essa
moça bonita, com traços indígenas, negros, brancos, aquela mistura brasileira
que combina a pele morena com lindos olhos cor de mel avermelhados pelo cansaço
e dor da perda de seu filhinho, disse ter sido aconselhada a entrar com um
processo contra o hospital que deixou seu bebê partir. Disse que não o iria fazer porque não
adiantava nada, porque todos os dias isso acontece com várias pessoas, e nada
traria seu filho de volta.
Tive
que sair no meio da conversa pra tentar descer no meu destino. Meu destino...
tão diferente dessas moças, meu Deus, como sou grata pela minha vida. Meu Deus,
porque é só Deus que pode ajudar, só Deus pode colocar na cabeça daqueles que
podem mudar essa situação LUZ e compaixão pelo povo que governa. Agora entendo o que me disse a menina
Senegalesa, uma linda garota com a face marcada por uma cicatriz, que perdeu
sua família na guerra e que estava exilada na Itália. Suas palavras, agora,
ressoam forte: confio apenas em Deus,
porque sei do que os homens são capazes. Meu Deus, que sua centelha desabroche
cada vez mais nos corações, que o poder do livre arbítrio conduza os seres
humanos à liberdade.
Fiz
o que sou capaz de fazer. Enchi meu coração de LUZ, dei um
abraço cheio de amor na mãe, cumprimentei a outra garota e disse que sim, ela
deveria processar aquele hospital. Guardei o seu nome. Kátia Oliveira. Quantas
serão as Kátias Oliveiras?