quarta-feira, 21 de agosto de 2013


                1, 2, 3, 4 vagões lotados. Dou um passo pra trás, seguindo o ditado, pensando que conseguiria dar outros adiante com maior facilidade. Ledo engano. Saio da estação de metrô República e vou pra Santa Cecília. 1, 2, 3, 4, 5, 6 ... Depois de quase 45 minutos entre a estação Brigadeiro e Santa Cecília, desisti de contar vagões lotados, desisti de controlar o desespero de chegar atrasada, desisti de olhar com revolta para os trens vazios que intercalavam as latas de sardinha. Tirei os fones de ouvido e parei de ouvir mantras.

                O povo é pacífico, acostumado a não reclamar porque, segundo as opiniões comuns, não adianta. Mentira: adianta sim. Fui conversar com a responsável da cabine de controle, saber o que estava acontecendo. Ela me explicou, meio sem graça, sabendo que não tinha muito a explicar, sugeriu novas rotas – que não deram certo – e contou sua história, o percurso insano que faz pra chegar ao trabalho, usando trem e metrô, porque se viesse de ônibus gastaria o dobro do tempo. Tentei pegar um ônibus, mas teria que pegar dois pra chegar ao meu destino. Ganhei um bilhete de metrô pra compensar minha perda de tempo. Senti-me desconfortável, no primeiro momento, por ganhar uma passagem gratuita, mas em seguida recordei que fui reclamar, tomei a atitude de revindicar um direito de todos, porque fui educada assim. Voltei ao metrô e a moça da cabine disse que havia pedido um trem vazio, que já estava chegando, para partir da estação. Adianta sim reclamar.

                Desci à plataforma, chegou o trem o vazio, e pude até me sentar ao lado de duas moças. Comecei a falar alto que todo político, antes de exercer seus cargos, deveriam ser obrigados a usar por um ano os meios de transportes públicos em horários de picos, sozinhos, sem guarda-costas, acotovelando-se e se controlando pra serem educados, pedirem licença, obrigado etc. Queria  ver essa moçada falando que o povo é mal educado... Algumas pessoas deram risada, outros ficaram bem sérios e evitaram olhar pra mim, e as duas moças ao lado engrenaram um papo. Rolou a conversa de sempre, sobre o sistema precário de saúde, educação e transportes públicos, aquilo que deveria ser a obrigação do Estado dar aos trabalhadores, aos contribuintes, aos cidadãos; aquelas boas condições que os políticos se comprometem em dar à população para serem elegidos.
                Percebi a inteligência sofrida nos olhos brilhantes e exaustos das moças, e logo elas perceberam que aquela não era minha realidade e me contaram suas vidas. Vida de gente batalhadora, honesta, pobre, com garra pra modificar a situação, com uma paciência infinitamente maior que a minha para suportar os revezes. Fiquei envergonhada pela minha revolta de um dia. Uma era enfermeira, tentando frequentar faculdade de medicina, mas veio do ensino público, não tem dinheiro pra pagar uma faculdade particular e não tem base pra entrar em faculdade gratuita. Pega, todos os dias, no horário de pico, aquele mesmo trem em que nos encontramos. A outra estava com um livro aberto na mão. Tá bom, nem vou falar qual era o autor, mas estava lendo um livro e se tivesse tido outras oportunidades estaria lendo outros livros. Notei que usava como marcador a carteirinha de seu plano de saúde.

                Lá pelas tantas, a moça do livro contou que há um mês atrás havia perdido seu filhinho. Quando ele nasceu, começou a pagar um convênio médico particular. Tentou colocá-lo como seu dependente, mas o período de carência não permitiu. O menino com dois meses ficou doente, foi a um hospital público, e disseram que não tinha nada. Da última vez que o menino foi ao hospital, não voltou mais. Teve uma parada cardíaca e foi embora dessa terra com apenas três meses. Essa moça bonita, com traços indígenas, negros, brancos, aquela mistura brasileira que combina a pele morena com lindos olhos cor de mel avermelhados pelo cansaço e dor da perda de seu filhinho, disse ter sido aconselhada a entrar com um processo contra o hospital que deixou seu bebê  partir. Disse que não o iria fazer porque não adiantava nada, porque todos os dias isso acontece com várias pessoas, e nada traria seu filho de volta.

                Tive que sair no meio da conversa pra tentar descer no meu destino. Meu destino... tão diferente dessas moças, meu Deus, como sou grata pela minha vida. Meu Deus, porque é só Deus que pode ajudar, só Deus pode colocar na cabeça daqueles que podem mudar essa situação LUZ e compaixão pelo povo que governa.  Agora entendo o que me disse a menina Senegalesa, uma linda garota com a face marcada por uma cicatriz, que perdeu sua família na guerra e que estava exilada na Itália. Suas palavras, agora, ressoam forte: confio  apenas em Deus, porque sei do que os homens são capazes. Meu Deus, que sua centelha desabroche cada vez mais nos corações, que o poder do livre arbítrio conduza os seres humanos à liberdade.

                Fiz o que sou capaz de fazer. Enchi meu coração de LUZ, dei um abraço cheio de amor na mãe, cumprimentei a outra garota e disse que sim, ela deveria processar aquele hospital. Guardei o seu nome. Kátia Oliveira. Quantas serão as Kátias Oliveiras? 

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Raquel


                A Raquel sempre foi linda, a representante da belo feminino da família. Mas que surpresa, ao olhar o caixão, e ver sim uma figura bonita, mas faltava o motivo de tanta lindeza: sua alma. Festeira como ela, jamais ficaria em seu próprio velório! Seu coro da terceira idade a entendeu perfeitamente e na coroa de flores escreveram: “Raquel, que você continue levando sua alegria”, ou algo assim.
                Quando voltei pra casa, chorei, por egoísmo, mas logo fui invadida por um amor tão forte e pelas lembranças das suas piadas, que o choro se transformou em riso pra dar lugar a gargalhadas. Como podia ser diferente? Raquel, leonina, a rainha da alegria, da sapequice, só aprontava! Ela me ensinou a sair do corpo, me emprestava suas roupas e me maquiava, me dizia como era o mundo, pra ficar atenta, ela sabia se mover na terra, eu não. Acho que nossas purezas se encontravam.
                A primeira vez que tive um encontro foi por meio dela. Antes de sairmos, ela disse pra mentir a idade, pois o moço tinha 24 anos. Bom, no fatídico momento, disse ter treze anos ao invés dos doze... Ficou aquele climaço, e ela me levou ao banheiro, morrendo de rir  da minha ingenuidade, porque eu continuava a falar: mas aumentei minha idade!
                E as histórias continuavam. Os chopes no boteco perto das tradicionais aulas de piano da Fundaçao Magda Tagliaferro,  regados pelas trocas de conhecimentos afetivos, ou melhor, meu aprendizado de coisas de mulher, do universo feminino que tinha tanta dificuldade em entender; uma porção de batatas fritas enquanto falávamos de músicas, dos livros do Castanheda, e também inventávamos apelidos pra todos que não estavam presentes... Uma vez, quando estava me separando do meu primeiro marido, sentindo-me dividida, ela lançou a pergunta: “Numa escala de 0 a 100, quanto você o ama?”. Parei pra pensar, e disse algo entre 75 e 85. E ela, no meio da gargalhada,  disse: “Tonta, desde quando amor tem medida? Ou se ama ou não se ama!”. Era seu jeito de ajudar, de aconselhar com astúcia, brincando, deixando tudo mais claro e fácil.
                Encontrei minha prima em outros planos duas vezes. Na primeira mostrou um piano de camurça castanho. Como a conheço, achei que era alguma peça que estava me pregando. Mas ela me dizia: “Tem sim, Betinha, aqui tem piano sim e é de camurça dobrável!”. Na segunda vez, me disse que foi embora por causa da dengue. Depois, nunca mais a encontrei lá fora, mas às vezes sinto sua presença, como agora, que vem um amor, uma alegria indizível e a pele fica arrepiada...
                Raquelita tá lá, tacando purpurina nas asas dos anjos, fazendo os seres luminosos substituírem os cantos gregorianos pelos buarquianos, caetaneanos, djavaneanos; botando o coro celestial pra requebrar em seu arranjo de Querubim... Tá lá acompanhando a moçada no piano de camurça castanho claro, e quando sair, vai dobrá-lo e levá-lo debaixo de suas asas. Cheias de purpurina, é claro.