terça-feira, 13 de agosto de 2013

Raquel


                A Raquel sempre foi linda, a representante da belo feminino da família. Mas que surpresa, ao olhar o caixão, e ver sim uma figura bonita, mas faltava o motivo de tanta lindeza: sua alma. Festeira como ela, jamais ficaria em seu próprio velório! Seu coro da terceira idade a entendeu perfeitamente e na coroa de flores escreveram: “Raquel, que você continue levando sua alegria”, ou algo assim.
                Quando voltei pra casa, chorei, por egoísmo, mas logo fui invadida por um amor tão forte e pelas lembranças das suas piadas, que o choro se transformou em riso pra dar lugar a gargalhadas. Como podia ser diferente? Raquel, leonina, a rainha da alegria, da sapequice, só aprontava! Ela me ensinou a sair do corpo, me emprestava suas roupas e me maquiava, me dizia como era o mundo, pra ficar atenta, ela sabia se mover na terra, eu não. Acho que nossas purezas se encontravam.
                A primeira vez que tive um encontro foi por meio dela. Antes de sairmos, ela disse pra mentir a idade, pois o moço tinha 24 anos. Bom, no fatídico momento, disse ter treze anos ao invés dos doze... Ficou aquele climaço, e ela me levou ao banheiro, morrendo de rir  da minha ingenuidade, porque eu continuava a falar: mas aumentei minha idade!
                E as histórias continuavam. Os chopes no boteco perto das tradicionais aulas de piano da Fundaçao Magda Tagliaferro,  regados pelas trocas de conhecimentos afetivos, ou melhor, meu aprendizado de coisas de mulher, do universo feminino que tinha tanta dificuldade em entender; uma porção de batatas fritas enquanto falávamos de músicas, dos livros do Castanheda, e também inventávamos apelidos pra todos que não estavam presentes... Uma vez, quando estava me separando do meu primeiro marido, sentindo-me dividida, ela lançou a pergunta: “Numa escala de 0 a 100, quanto você o ama?”. Parei pra pensar, e disse algo entre 75 e 85. E ela, no meio da gargalhada,  disse: “Tonta, desde quando amor tem medida? Ou se ama ou não se ama!”. Era seu jeito de ajudar, de aconselhar com astúcia, brincando, deixando tudo mais claro e fácil.
                Encontrei minha prima em outros planos duas vezes. Na primeira mostrou um piano de camurça castanho. Como a conheço, achei que era alguma peça que estava me pregando. Mas ela me dizia: “Tem sim, Betinha, aqui tem piano sim e é de camurça dobrável!”. Na segunda vez, me disse que foi embora por causa da dengue. Depois, nunca mais a encontrei lá fora, mas às vezes sinto sua presença, como agora, que vem um amor, uma alegria indizível e a pele fica arrepiada...
                Raquelita tá lá, tacando purpurina nas asas dos anjos, fazendo os seres luminosos substituírem os cantos gregorianos pelos buarquianos, caetaneanos, djavaneanos; botando o coro celestial pra requebrar em seu arranjo de Querubim... Tá lá acompanhando a moçada no piano de camurça castanho claro, e quando sair, vai dobrá-lo e levá-lo debaixo de suas asas. Cheias de purpurina, é claro.

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