Tá lá o corpo estendido no chão...
Entre a
banca de jornal e uma pensão para moças, estava o corpo de uma garota estendido
no chão. Perguntei se alguém a conhecia na banca, no bar ao lado. Ninguém sabia nada dela. Perguntei se tinham chamado ajuda, pois a moça estava quase sendo
pisoteada pelos passantes devido o espaço que ocupava na calçada. Ninguém tinha
chamado ajuda e um cara ainda disse, com um sorriso irônico, que ela estava
curtindo a ressaca.
A jovem
estava machucada, com marcas de picadas pelo corpo todo, um olho roxo e com os
pontos ainda evidentes de um ferimento no nariz. Liguei pro SAMU, caiu a
ligação, aí liguei pra PM e enviaram uma viatura. Durante os vinte minutos que aguardei os policiais, a moça se revirava, parecia sentir dores, e não sei
quantas pessoas passaram por ela sem olhar, só desviando da matéria incômoda em seu trajeto; outras tantas a olhavam com piedade, mais ou menos 3 segundos de
piedade, e iam embora; duas ou três se preocuparam e falaram que era melhor
ligar pra alguém, mas não ligaram. Como fiquei lá de plantão, para que pelo menos
ela não fosse pisoteada, uma pessoa me perguntou se a conhecia, outra perguntou
se eu era assistente social, outra se era oficial de justiça. O dono do bar e
sua mulher disseram pra mim que não adiantava nada chamar alguém pra ajudar,
eles viam muitas pessoas assim, e não tinha como ajudar. Ouvi quieta, com atenção. E continuei a esperar os PMs.
Quando
os policiais chegaram, um deles desceu, agradeceu minha chamada e foi conversar
com a moça que, ao ouvir a voz do cara, rapidamente se sentou. Era um policial do bem,
daqueles que a gente fica feliz por existir. A conversa entre nós três foi
rápida: ela estava com ressaca, com certeza de bebida e provavelmente de drogas,
o policial disse que ambulância não atende quem está embriagado e que ele não
podia fazer nada porque a menina dizia que tinha casa mas queria ficar na rua.
Na hora que ele pediu o nome dela, ela olhou pra mim e disse: “Viu o que você
fez?” Entendi o que fiz. Entendi mesmo.
Ela ainda me perguntou: “Você se preocupou comigo?” E seus olhos brilharam.
Logo em seguida pediu que lhe comprasse comida.
O
policial foi embora, com o nome fake da garota e meu nome de verdade, dizendo
que tinha tido boa intenção, mas essas coisas são complicadas, não tem como resolver, não tem pra onde levar a garota, não tem como ajudar e provavelmente amanhã ela estará nas mesmas condições. Sim, essas coisas são complicadas, eu não consegui resolver, fiz
o que achava que tinha que fazer, e vou continuar fazendo até encontrar – e poder fazer
- coisa melhor. Paguei uma coxinha pra
menina, que podia muito bem ser minha irmã, minha amiga, minha sobrinha, e
deixei o troco pra ela. Quando estava saindo do bar, a mulher que a servia me
disse: “Tá vendo? Ela quer uma pinga.”
Ah,
menina, desculpe se não posso realmente te ajudar, porque te ajudar seria te
trazer pra casa, te dar abrigo, conversar contigo, te levar pra um tratamento
de saúde, te apoiar no seu dia-a-dia, e ter consciência que mesmo se pudesse fazer isso por você, seria
apenas uma tentativa, não uma certeza de que sua vida seria melhor. Só você
pode deixar sua vida melhor.
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