Papai, ucraniano
de Kamenskoye, renomeada Dniprodzerzhynsk em 1936, conterrâneo
de Brejnev, adorava a chamada “música clássica”... Ele nasceu em 28, filho de
aristocratas que permaneceram na terra natal e sobreviveram à matança dos anos
que seguiram a revolução de 17. Brejnev, ainda jovem mas já com cargo
importante, resolveu criar uma universidade em sua cidade e meu avó saiu da prisão
pra dar aulas de literatura e línguas estrangeiras. Reza a lenda que ele falava
e escrevia com fluência 7 línguas, pois era o representante internacional das
vendas de ouro das minas da família, que foi assassinada na revolução enquanto
ele fazia negócios em Paris. Papai dizia que meu avó só tinha sido chamado pra
ser professor na faculdade porque os “comunistas” não tinham outra opção depois
de terem acabado com a elite cultural do país... Pontos de vista...Mas lá pro
finalzinho da sua vida, finalmente ouvi algo de positivo saído de sua boca
sobre aquele sistema, aquela ideologia, aquele “ismo”, que tanto nos
distanciou.
Ouvindo juntos a
nona sinfonia de Beethoven, regida por Karajan, pela milionésima vez, papai
abaixou o som, pediu lápis e papel e, com as mãos trêmulas, fez o desenho
acima. Finalizado o desenho (sim, ele fazia uma coisa de cada vez, de um jeito
bem europeu. Como queria ter aprendido
isso...) me explicava, com aquele sotaque teuto-ucraniano que nem os cinquenta
anos como brasileiro conseguiram apagar: “Bête, antes da revolução, o povo de Kamenskoye vivia debaixo da terra. Escavavam um buraco e colocavam
esterco pra segurar as paredes; construíam uma lareira que também servia como
saída de ar, e conseguiam assim afastar o frio. Os comunistas destruíram essas
favelas subterrâneas e construíram moradias simples, mas melhor equipadas,
pequenos prédios de três andares que abrigaram essas pessoas. Primeiro
construíram as novas casas, mudaram o povo pra lá, e depois destruíram as
favelas. Em cima delas, das antigas moradias, construíram parques pro povo
passear, e nesses parques tinham coretos onde todos os domingos se apresentavam
orquestras que tocavam Rachmaninoff, Tchaikovsky, Prokofiev.Era a nossa única
diversão.”
Em
1936 os policiais invadiram de madrugada a casa dos meus avós e levaram, na
porrada, meu avô pra Sibéria, debaixo dos olhares e súplicas da vovó e das
crianças. Essa ação fazia parte da “limpeza” instaurada por Stalin.
Quanta saudades...
ResponderExcluir