Quem de fato consegue relatar o fato?
Minha querida
terapeuta, Maísa Intelisano, já me perguntou duas vezes “o que é de fato?”. Na
primeira vez me esforcei ao máximo pra me distanciar emocionalmente, tentar
alcançar a experiência com racionalidade, tirando as vestimentas pessoais da
situação. Hmmm... Na segunda vez, me dei por vencida: impossível observar o
fato por si só; sempre serei eu a percebê-lo, por maior que seja o esforço de
isentá-lo das roupas pessoais. Algo interior, o mínimo que seja, deformará o
fato externo. (Externo?) Lembrei-me de dois livros que li há muitos anos atrás.
No “Mayombe” de Pepetela, um maravilhoso escritor angolano, ele descreve o
mesmo fato através dos olhos de várias pessoas de culturas diferentes. Preciso
reler o livro, mas do que me lembro, o “fato em si” tinha algumas pequenas
semelhanças nos diversos relatos, mas dependendo da maneira como eram
vistos/vividos, eram interpretados em maneiras completamente distintas, e
acabavam por provocar reações ainda mais diferentes. O outro livro é “Exercícios
de Estilo” de Raymond Queneau (esse encontrei disponível na net: http://pt.scribd.com/doc/58086474/Exercicios-de-Estilo-de-Raymond-Queneau-em-Portugues
) onde ele conta 99 vezes a mesma história banal em diversos estilos, e nem
sempre a gente consegue reconhecer de
fato “o fato”. Tendencialmente cubro os fatos com aquilo que chamam de fantasias...
Hmmmm... Prefiro dizer que são significados outros, às vezes incomuns, mas que
pertencem à minha realidade. Sei que às vezes estou com óculos cor de rosa,
outras com cinzas, ou amarelos, azuis... São minhas lentes, e sabendo que essas
lentes, apesar de serem reais, de fazerem parte da minha verdade, nem sempre
conseguem alcançar a realidade dos outros. Sabendo disso, procuro ouvir a
descrição das outras realidades, tornar cotidiano o exercício que fiz ao tentar
responder pela primeira vez a pergunta da minha terapeuta. Procuro entender o
que exagero, o que floreio, quais são as emoções que estão presentes na
interpretação do fato do momento e quais experiências passadas me levam a enxergar
dessa maneira; quais são os fantasmas, quais são as sombras, as neuroses que
distorcem os fatos. Outras vezes relaxo, e só me deixo sentir o frescor do doce
vento de outono. Sim, é apenas um vento, mas é fresco, doce e aqui está, nesta
estação.
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