domingo, 19 de fevereiro de 2012

Sacro Ofício

         Quando tinha 19 anos meu pai parou de pagar a faculdade de música: “Bêtê, música não é pra qualquer um. Teu pai não é rico, você precisa arranjar uma profissão que te sustente.” Tentei retrucar, mas ele acabou por me dizer que eu não tinha tanto talento assim. Parte de mim acreditou, outra não, e acabei ingressando numa faculdade pública e arranjando trabalhos com música pra pagar meus gastos. A pressão continuou. Tudo aquilo que não conseguia pagar com meu próprio dinheiro e tinha a ver com a música, era negado, até as aulas com o Koellreutter que parei na época do plano Collor, quando fui demitida da pizzaria que tocava. (Primeiro foram despedidos os manobristas, depois os pianistas...). Mas insisti mesmo assim. Terminei a faculdade de música, saí do Brasil, vivi a maravilhosa experiência com a Associação Cultural Cantosospeso, tive uma excelente formação com o Martinho Lutero e realizei os sonhos que tinha. Voltei pro Brasil sem um centavo, sem trabalho, mas com a perspectiva de ingressar no mestrado, e com a única possibilidade de morar outra vez com meus pais. Mais pressão. Com tudo o que estava acontecendo na minha vida, ainda tive que ouvir: ”Você fez muita música bonita, só que ainda não consegue se sustentar.” Comecei do zero econômico, outra vez, mas não desisti dos meus sonhos, mesmo porque nem tenho como desistir; a música está presente 24 horas por dia, é a única amarra que permito. Hoje entendo meu pai, ele agiu da melhor maneira que podia: quem não tem a música dentro de si é incapaz de entender que não dá pra ser outra coisa. Ela fica grudada o dia inteiro na gente, a cada gesto, pensamento, sensação. Não adianta driblá-la, porque logo vem a cobrança: são os dedos que não deslizam no piano, a voz que desafina, a inspiração que some. Meu pai até tinha razão de que música não é pra qualquer um - a música como profissão - só não sabia que independe de ter ou não pais ricos, porque pra ser músico é preciso estar disposto ao sacrifício. Quem é músico entende o sacro ofício. 

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